Madrugada de abril. Talvez seja estranho, mas ao mesmo tempo curioso o modo com que algumas pessoas resolvem relatar um momento de vida.
A atmosfera é aparentemente calma. Uma televisão sem cor e sem som. Um quarto iluminado, vazio e frio com cheiro de solidão. Uma ponta de cigarro recém apagado, ainda deixa escapar uma fumaça preguiçosa. Tudo parece em seu lugar. Talvez o sono ainda demore um pouco a chegar. É provável que tenha se perdido pelos meandros da vida. Algumas folhas de papel espalhadas pela cama; outras escondidas dentro de um caderno rico em registros de sentimentos fortes e verdadeiros - o enredo de uma vida sofrida, doída, mas com vontade de se mostrar esperançosa e confiante.
É forte e bonita a presença viva e contorcida de uma mulher de trinta anos. Profissional competente, desquitada, duas filhas e que luta para poder ingressar na minoria selecionada dos que conseguem sobreviver aos angustiados jogos de sorte ou, quem sabe, azar do dia-a-dia.
Como custa amanhecer! Já é tarde, mas existe no ar uma vontade premente de dizer bom dia. Alguns dias parecem cheios e longos; outros, sonolentos e pesados. Mas é preciso saber conviver com a dor e descobrir o sabor de mel nas respostas amargas que a vida criou o hábito, cada vez maior, de se fazer saborear.
A atmosfera continua calma. A luz do quarto apresenta-se morna e sombria. A mulher ainda se encontra no mesmo lugar, envolta na mesma atmosfera sem ar, a confidenciar sua solidão com as lembranças do que poderia ter acontecido. É, poderia ter sido diferente. Sempre poderia ter sido o que não foi, e é isso que desencadeia a solidão.
"Por que será que a dor faz algumas pessoas se parecerem com os poetas, cantadores de dores melodiosas, que provocam a sensação de alívio? É a catarse! Quem bom que existe a catarse!"-pensou. Mas para viver este momento maravilhoso, é preciso que se perceba os próprios limites e que se saiba consciente do crescimento para agüentá-lo e dele colher frutos. Como dói crescer!
Ela sabe que, na realidade, o que provoca questionamentos numa mulher que esta atingindo a maturidade, e a mentira. O achar que esta sendo enganada. Parece que as pessoas não acreditam que, neste momento de vida, atravessam-se os grandes desertos exupéryanos e ignoram que, mesmo assim, chega-se ainda com alguma porção de água no cantil e profundos e específicos conhecimentos de “cobras".
Ela sente que não vale a pena ficar deprimida, porque a depressão constata a falta de perspectiva e não se pode perdê-Ias quando se buscam as estrelas. A companhia aparentemente doente da solidão e da carência, apesar de tudo, permite a reflexão. mesmo sem aliviar, de imediato,essa dor cruel e impiedosa que mobiliza os que com ela convivem.
Existe muita vontade de chorar!
É necessário chorar!
É preciso mergulhar dentro de si mesma para que possa juntar os pedaços que se encontram desarrumados. Ela está machucada, dividida e sem forma. Os sentimentos remexidos abriram uma ferida que se vê, agora, nunca fechou. Dói. Ainda vai doer muito, mas o convívio com a dor é incoerentemente belo, pois só através dessa batalha travada com o interior é que se consegue chegar à transformação desejada.
Entretanto, o que mais tira a calma desta mulher, é perceber que, ultimamente , não tem conseguido estar feliz, pois vive girando em torno de sentimentos angustiantes e se vê compactuando com a inércia.
Essa mulher quer aprender a escutar, sem medo, as reflexões do silêncio de que precisa para se perceber inteira, demais.
Mas, às vezes, esse profundo silêncio se transforma em vozes que mostram verdades nas quais não quer e não pode acreditar, provocando uma verdadeira confusão dentro de si mesma, fazendo com que experimente a dor da alma.
Ela vem se perguntando por que será que uma mulher tem que viver tanta dor, tanto desamor, tanta desesperança, apesar de saber que não se deve brincar com o amor. Ao mesmo tempo que ele apresenta saídas, faz perguntas de impossíveis e indecifráveis respostas. Apesar de aproximar pessoas, as desestrutura com separações de impacto inesperado e ao provocar a dança da felicidade, denuncia a presença impiedosa da tristeza.
Ela constata que a vida é uma ambigüidade interminável e a beleza surge do convívio com as antíteses do dia-a-dia.
Há alguns anos, esta mulher descobriu o amor de verdade.
Viveu momentos maravilhosos e inesquecíveis, mas a fumaça escura da convivência deixou sombria e ameaçada a certeza de um amor, até então, maior. Descobriu que há regras e normas que podem ser seguidas para isso não acontecer quantas forem as possibilidades de reformulação de cada um. O grande problema é quando essa tentativa se apresenta unilateral. Aquele que luta sozinho pela relação fica sobrecarregado e gradativamente infeliz. Assim, aquelas perguntas de respostas impossíveis chegam lentamente, acelerando o coração que está magoado. Se tudo foi feito com vontade de acertar, onde se escondeu o erro? Se tentou de todas as formas resgatar o afeto, onde esteve camuflada a conquista? Se usou a voz num tom doce para não ferir o outro, por que gritos desconcertantes foram ouvidos? Se houve a procura do olhar fundo nos olhos, por que eles se encontravam vendados? Se aproximações emocionantes foram provocadas, por que aconteceu o nocaute da indiferença? Se inesgotáveis perguntas foram formuladas, por que não se obtiveram respostas promissoras?
Depois disso, a mulher pôde constatar, mais uma vez, que continuava só e que vivia o peso gelado da solidão e do abandono. Sentiu saudade. Muita saudade. Quis sair e encontrar alguém. Tentou se levantar. Suas pernas estavam pesadas e seu peito sobre carregado de uma dor que jamais pensou sentir outra vez. Olhou para fora da janela. Não viu mais a madrugada de abril.
A atmosfera do quarto continua aparentemente calma, mas se conserva fria. Há um cheiro de luta no ar.
Mais tranqüila, observa as pontas de cigarro, agora já completamente apagadas e percebe que o sono perdido não foi resgatado. Não faz mal. Sorri. Uma lágrima de vitória escorre pelo seu rosto cansado e abatido. Não houve tempo de apagar a luz, agora tímida, fraca e dispensável. O sol já brilha além das cortinas anunciando a chegada de um novo momento. Os papéis sobre a cama mostram e comprovam que sobreviveu. Agora, já é possível dizer bom-dia!
Mara Gonçalves
1991
A atmosfera é aparentemente calma. Uma televisão sem cor e sem som. Um quarto iluminado, vazio e frio com cheiro de solidão. Uma ponta de cigarro recém apagado, ainda deixa escapar uma fumaça preguiçosa. Tudo parece em seu lugar. Talvez o sono ainda demore um pouco a chegar. É provável que tenha se perdido pelos meandros da vida. Algumas folhas de papel espalhadas pela cama; outras escondidas dentro de um caderno rico em registros de sentimentos fortes e verdadeiros - o enredo de uma vida sofrida, doída, mas com vontade de se mostrar esperançosa e confiante.
É forte e bonita a presença viva e contorcida de uma mulher de trinta anos. Profissional competente, desquitada, duas filhas e que luta para poder ingressar na minoria selecionada dos que conseguem sobreviver aos angustiados jogos de sorte ou, quem sabe, azar do dia-a-dia.
Como custa amanhecer! Já é tarde, mas existe no ar uma vontade premente de dizer bom dia. Alguns dias parecem cheios e longos; outros, sonolentos e pesados. Mas é preciso saber conviver com a dor e descobrir o sabor de mel nas respostas amargas que a vida criou o hábito, cada vez maior, de se fazer saborear.
A atmosfera continua calma. A luz do quarto apresenta-se morna e sombria. A mulher ainda se encontra no mesmo lugar, envolta na mesma atmosfera sem ar, a confidenciar sua solidão com as lembranças do que poderia ter acontecido. É, poderia ter sido diferente. Sempre poderia ter sido o que não foi, e é isso que desencadeia a solidão.
"Por que será que a dor faz algumas pessoas se parecerem com os poetas, cantadores de dores melodiosas, que provocam a sensação de alívio? É a catarse! Quem bom que existe a catarse!"-pensou. Mas para viver este momento maravilhoso, é preciso que se perceba os próprios limites e que se saiba consciente do crescimento para agüentá-lo e dele colher frutos. Como dói crescer!
Ela sabe que, na realidade, o que provoca questionamentos numa mulher que esta atingindo a maturidade, e a mentira. O achar que esta sendo enganada. Parece que as pessoas não acreditam que, neste momento de vida, atravessam-se os grandes desertos exupéryanos e ignoram que, mesmo assim, chega-se ainda com alguma porção de água no cantil e profundos e específicos conhecimentos de “cobras".
Ela sente que não vale a pena ficar deprimida, porque a depressão constata a falta de perspectiva e não se pode perdê-Ias quando se buscam as estrelas. A companhia aparentemente doente da solidão e da carência, apesar de tudo, permite a reflexão. mesmo sem aliviar, de imediato,essa dor cruel e impiedosa que mobiliza os que com ela convivem.
Existe muita vontade de chorar!
É necessário chorar!
É preciso mergulhar dentro de si mesma para que possa juntar os pedaços que se encontram desarrumados. Ela está machucada, dividida e sem forma. Os sentimentos remexidos abriram uma ferida que se vê, agora, nunca fechou. Dói. Ainda vai doer muito, mas o convívio com a dor é incoerentemente belo, pois só através dessa batalha travada com o interior é que se consegue chegar à transformação desejada.
Entretanto, o que mais tira a calma desta mulher, é perceber que, ultimamente , não tem conseguido estar feliz, pois vive girando em torno de sentimentos angustiantes e se vê compactuando com a inércia.
Essa mulher quer aprender a escutar, sem medo, as reflexões do silêncio de que precisa para se perceber inteira, demais.
Mas, às vezes, esse profundo silêncio se transforma em vozes que mostram verdades nas quais não quer e não pode acreditar, provocando uma verdadeira confusão dentro de si mesma, fazendo com que experimente a dor da alma.
Ela vem se perguntando por que será que uma mulher tem que viver tanta dor, tanto desamor, tanta desesperança, apesar de saber que não se deve brincar com o amor. Ao mesmo tempo que ele apresenta saídas, faz perguntas de impossíveis e indecifráveis respostas. Apesar de aproximar pessoas, as desestrutura com separações de impacto inesperado e ao provocar a dança da felicidade, denuncia a presença impiedosa da tristeza.
Ela constata que a vida é uma ambigüidade interminável e a beleza surge do convívio com as antíteses do dia-a-dia.
Há alguns anos, esta mulher descobriu o amor de verdade.
Viveu momentos maravilhosos e inesquecíveis, mas a fumaça escura da convivência deixou sombria e ameaçada a certeza de um amor, até então, maior. Descobriu que há regras e normas que podem ser seguidas para isso não acontecer quantas forem as possibilidades de reformulação de cada um. O grande problema é quando essa tentativa se apresenta unilateral. Aquele que luta sozinho pela relação fica sobrecarregado e gradativamente infeliz. Assim, aquelas perguntas de respostas impossíveis chegam lentamente, acelerando o coração que está magoado. Se tudo foi feito com vontade de acertar, onde se escondeu o erro? Se tentou de todas as formas resgatar o afeto, onde esteve camuflada a conquista? Se usou a voz num tom doce para não ferir o outro, por que gritos desconcertantes foram ouvidos? Se houve a procura do olhar fundo nos olhos, por que eles se encontravam vendados? Se aproximações emocionantes foram provocadas, por que aconteceu o nocaute da indiferença? Se inesgotáveis perguntas foram formuladas, por que não se obtiveram respostas promissoras?
Depois disso, a mulher pôde constatar, mais uma vez, que continuava só e que vivia o peso gelado da solidão e do abandono. Sentiu saudade. Muita saudade. Quis sair e encontrar alguém. Tentou se levantar. Suas pernas estavam pesadas e seu peito sobre carregado de uma dor que jamais pensou sentir outra vez. Olhou para fora da janela. Não viu mais a madrugada de abril.
A atmosfera do quarto continua aparentemente calma, mas se conserva fria. Há um cheiro de luta no ar.
Mais tranqüila, observa as pontas de cigarro, agora já completamente apagadas e percebe que o sono perdido não foi resgatado. Não faz mal. Sorri. Uma lágrima de vitória escorre pelo seu rosto cansado e abatido. Não houve tempo de apagar a luz, agora tímida, fraca e dispensável. O sol já brilha além das cortinas anunciando a chegada de um novo momento. Os papéis sobre a cama mostram e comprovam que sobreviveu. Agora, já é possível dizer bom-dia!
Mara Gonçalves
1991
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